A RELÍQUIA

Feriu-me em Notre-Dame, aquela farpa
há muito acreditada do madeiro;
e mesmo eu já sabendo tão comuns
tais sobras, que por pouco se inventava,
levando para tudo quanto é lado
pedaços −  pedacinhos −  o sarrafo
de tudo mais que fosse coisa santa
(pois toda catedral as tinha muitas

no gótico feliz de torre e treco!)
não vi exatamente do que rir:
cansados sacrilégios me entediam
do mesmo modo (ou mais!) que me entendia
piada menos santa, repetida.
As palmas que alardeiam tanto a missa,
os gritos de possessos, que há nos cultos,
escândalos de espíritos espíritas,

ebós nos cruzamentos da Bahia:
também já me entediam tais extremos,
de Cristo ou de orixá – tantos reclamos!
No escuro, em Notre-Dame, envolta em ouro
do reles relicário, ela ripa,
a mim me comoveu, no seu silêncio:
mistério que há nas coisas transmudadas
se um Midas já lhes toca – e é menino.

Tão pobre, aquela farpa! Tão sincera,
alheia às procissões por onde andara,
e hoje a tais cortejos de descrença!
Na Ilha da Cidade, sobre o Sena,
a ripa... − de barcaça ou carruagem? −
feriu-me em Notre-Dame, no museu
anexo, em que guardam suntuosos
hissopes, ostensórios, camafeus.

Ninguém ali não viu, quando eu criança,
toquei-a muito a sério, a tal relíquia,
e gaio, sério e gaio, vi presença:
sudário foi plotagem? É sudário!
Do Lenho, no meu dedo, entrou fasquia...
E gótico menino, a dor mentindo,
chamei (ninguém não viu!) ao grão-brinquedo:
a Cruz... Jangada ao mar... O arvoredo.

(In: "Culpe o vento". Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.)
Cruz da Princesa Palatina (Notre Dame de Paris).

Comentários