Os anjos de Solange
Livro sui generis, escrito durante uma tese de doutoramento sobre a novela "O anjo", de Jorge de Lima, o volume de poemas "O Anjo encarnado" (Scortecci, 2008), da poeta alagoana Solange Chalita, é daquelas obras em que o poético não se aparta do poema, quando se percebe uma espécie de chama ou fulguração em cada peça, nenhuma anódina, nenhuma preciosista, nenhuma menos "salivada pelo Verbo" -- como se sentia o poeta querido de Solange.
São 73 poemas em que uma dicção concisa, de acento clássico mas não infensa a imagens e recursos da pós-modernidade, como os cortes abruptos que deixam palavras isoladas no verso, recria o universo limiano. Um personagem estilizado, "Herói", migra das páginas de ficção da novela para os versos de Solange, que também assimilam a iconografia angélica -- "anjo custódio", "anjo anunciador" etc. -- e criam a sua própria -- "anjo pendular", "anjo maestro", "anjo de tinta", entre muitos outros.
Momentos de candura familiar são elevados à condição de poesia em "Um anjo para Celso e Marcela", quando se pode inferir que a autora tenha presenteado com um poema a sobrinhos recém-casados ("Apareces liquefeito/aos recém-casados//(...)//e então/ passearão na vida/abraçados/ao Anjo de tinta/ da tia"). Porque esta é uma poesia que reúne e aconchega, sem pudores de não se mostrar, eventualmente, antilírica ou bem-pensante. Se a reflexão acadêmica não fez sucumbir a poeta, muito menos o fariam as expectativas do meio literário -- com a mesma leveza do poema aos sobrinhos, a base teórica utilizada para a tese desliza para outros momentos: é o que vemos quando Jung é imaginado como leitor de Jorge de Lima, ou quando Solange rouba um anjo a Walter Benjamim -- em possível referência ao estudo "O anjo da história", o qual, por sua vez, parte de uma tela de Paul Klee.
Momentos de candura familiar são elevados à condição de poesia em "Um anjo para Celso e Marcela", quando se pode inferir que a autora tenha presenteado com um poema a sobrinhos recém-casados ("Apareces liquefeito/aos recém-casados//(...)//e então/ passearão na vida/abraçados/ao Anjo de tinta/ da tia"). Porque esta é uma poesia que reúne e aconchega, sem pudores de não se mostrar, eventualmente, antilírica ou bem-pensante. Se a reflexão acadêmica não fez sucumbir a poeta, muito menos o fariam as expectativas do meio literário -- com a mesma leveza do poema aos sobrinhos, a base teórica utilizada para a tese desliza para outros momentos: é o que vemos quando Jung é imaginado como leitor de Jorge de Lima, ou quando Solange rouba um anjo a Walter Benjamim -- em possível referência ao estudo "O anjo da história", o qual, por sua vez, parte de uma tela de Paul Klee.
A autora, que é viúva do pintor alagoano de origem libanesa Pierre Chalita, e administra a Fundação com seu acervo, é certeira na tessitura de imagens. O livro, aliás, traz ilustrações de Pierre Chalita, e assim estamos diante de mais um campo dialogal, agora o do amor entre os dois artistas -- a poeta e o pintor --, que com isso atualizam uma dualidade fundadora do próprio Jorge de Lima.
Não escapam a Solange os paroxismos de um mundo descartável e utilitário, em contraponto a essa figura emblemática da tradição religiosa -- o anjo --, escolhida como objeto e refração do "eu" lírico. Assim, por exemplo, no poema "Anjo renovador", vemos trombetas "de garrafas pet" e "asas de PVC", quando seriam de se esperar bronze e plumas. Mas, como também diria Jorge de Lima, agora no soneto "O anjo daltônico": "...muita coisa a um anjo se assemelha".
A seguir, transcrevo "Anjo renovador" e mais dois poemas, escolhidos por absoluta preferência pessoal, neste livro em que tudo parece estar em ascensão.
Ao terminar a leitura de "O anjo encarnado", e pensando em um Brasil talvez já farto da poesia "de coisas" -- este nosso país de asas cortadas, mais realista que o rei e mais cabralino que Cabral --, fiquei a me perguntar: isso existe? Mas, de resto, é essa a mesma pergunta que nos fazemos ao pensar em anjos.
Anjo renovador
Trocaste tuas asas de penas
por asas de PVC
e tuas sandálias de seda
por tiras de plástico vermelho
saudades divinas
fizeram
escorrer lágrimas
de teus olhos negramente profundos
o coração irrigado a petróleo
latejou
ritmado pelo fogo
o amor derreteu-se
caldo amargo
a saciar a sede
da humanidade agonizante
colorido e apocalíptico
vieste
para anunciar
o fim do mundo
com trombetas
de garrafa pet
Metamorfoses do Anjo limiano
migrou para o poema
com as mesmas penas
de ave guardiã
o vôo
deixou
sombra luminosa
que Herói não viu
na busca desejada
"Paraíso tropical", tela de Pierre Chalita |
Da narrativa
migrou para o
retrato
com asas
ortogonais
parecendo
pinto
azul e
encarnado
de perneiras e
botinas
o anjo
pousou na
retina de
Herói
maquiado
Da pintura
migrou para o cello
ave canora
guiando o cego
na procura
da bem-amada
morta
Encarnado
pelas mãos de Jorge
Custódio
foi o mais humano
dos Anjos
dupla sombra
de Herói
viveu
teve sonhos luxuriosos
bebeu
sofreu
peregrinou pela terra
como redator de carta
o melhor mensageiro
espalhou aos quatro cantos
que só o amor
pode remediar a injustiça
e redimir os pecadores
antes de se proletarizar
cristianizou-se
O livro:
"O anjo encarnado", menção honrosa do I Prêmio de Literatura UBE/Scortecci - 2005
A autora:
Solange Berard Lages Chalita
é doutora em Letras, poeta e artista plástica, presidente da Fundação Pierre Chalita (Maceió-AL).
Publicou também "Canto Anônimo" (poesia - 1967); "Canto Sinônimo" (poesia - 1970); "Canto/Desencanto" (poesia - 1975); "Passagem" (contos - 1979); "Lily Lages" (ensaio - 1978); "Teatro em dois tempos" (ensaio - 1994); "Uma leitura junguiana do cordel nordestino: dois exemplos" (ensaio - 2002); e "Canto mínimo" (poesia- 2008).
Acima, Solange e Pierre Chalita.
Grande Jorge de Lima! Poeta do qual, lamentavelmente, ando afastada. A sua obra eclética, sua lírica carregada de símbolos (religiosos, nordestinos, mitológicos) nos leva a reflexão sobre a nossa terra e a nossa gente mística. Este espaço é mto importante para recuperarmos autores tão próximos do nosso coração.
ResponderExcluirObrigado, Marta, a proposta é essa mesmo. Aliás, eu também andava longe de Jorge de Lima -- mas, felizmente, topei com Solange.
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