NUVENS, RAÍZES. FLORES


 
“Para o médico é muito evidente, mas para o leigo talvez não:
a pneumonia não é ali – ali é o coração.

A pneumonia são essas manchas brancas
essas nuvens – está vendo? essas nuvens brancas

aqui, como umas raízes”
− olhei: havia na chapa, de fato,


uma noite nebulosa que era também uma ár-

vore  revirada.

 
§

As nuvens de um céu da infância?
Raízes da algaroba plantada por meu tio?


Antes da saúde, foi-me dado saber:
metáfora ou memória podem ser traição.

 
§

Ah, mas como quisera ter dito:
AS FLORES DO PÁTIO BOIAVAM NO AR.

Foi no dia da alta. Consta que ainda houvesse

alguma radícula, ou cirro, em meu pulmão:
“A verdade clínica é sempre mais rápida que a radiográfica”

− ainda ouvi. Mas calei sobre as flores.

 
§

Menino logrado, vinguei-me
com uma colagem. Vai aqui:

 
 A verdade poética, embora muito evidente
é sempre mais lenta.

Mais lenta que a clínica, mais lenta

que a radiográfica.
As nuvens nos traem. As memórias

igual: as raízes.

Bate um coração com pneumonia.

 
§

Respiro. Durante tudo,
o amor frequentou o céu embruscado, enredou-se

na garabulha. Fácil, fácil,

desvencilhou-se. Entrava sem avisar:

simplesmente escancarava a janela.


 §

Cortar as unhas, cabelos! O corpo-algaroba
teimando em primavera... O poema

seguira a mesma lei: fiz ainda uma canção. Encerro com ela:

 

Leigo não sou,
doutor é que não:

sobra-me o vão

entre o silêncio e o jargão.
Nuvens, raízes

− tu vens, amor... E não me dizes!
 Saudade, saúde: dou-te a muito evidente

flor de ar – convalescente.
 



Edvard Munch: Autorretrato depois da gripe (1919) 

Comentários

  1. Navego sobre tuas palavras
    Pa...Lavras o oceano e a minha imaginação
    Navego sob tuas palavras
    Meu corpo coberto de poesia...


    Lindo trabalho, meu querido!!! Parabéns!!!

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